Recentemente
eu reli um dos livros mais interessantes e emblemáticos sobre a música
brasileira, principalmente daquela da fase da Jovem Guarda e da chamada “Música
Brega”, um termo que considero preconceituoso e fora de propósito. Trata-se do
livro “Eu Não Sou Cachorro Não”, do autor historiador Paulo César de Araújo, de 458 páginas, editado em 2002, pela
Editora Record.
O mundo
editorial de música brasileira é limitado, com poucas publicações, até porque o
público interessado também é restrito. Dos livros que já foram editados, em
minha opinião, esse é um dos melhores, principalmente pela direção que toma.
Não é
exatamente um livro apenas sobre música em geral. O autor defende uma causa que
nunca ninguém abordou, uma vez que são temas delicados, considerando o contexto
da época. Ele revela como os cantores considerados “cafonas ou bregas” dos anos
1970, justamente no período do militarismo do Brasil, foram censurados,
apanharam da direita e também enfrentaram exílio.
O autor
mostra no livro comentários de Waldick Soriano sobre tortura, Odair José
manifestando sobre maconha, além de mencionar relatos de outros artistas da
época, como Agnaldo Timóteo, Lindomar Castilho e Dom e Ravel
Artistas
considerados bregas, como Odair José e Waldik Soriano sempre apareceram no topo
da lista dos discos mais vendido. Veiculados em rádios, frequentavam os
programas de auditório, mas não receberam o devido respeito e espaço em livros
e teses, pois frequentemente eram associados à ditadura militar.
No
livro “Eu Não Sou Cachorro Não”, Paulo César de Araújo preenche essa lacuna na
histografia da música popular brasileira e mostra como figuras demonizadas por
aderirem à cultura oficial durante os anos de chumbo, na verdade, foram tão ou
mais perseguidas pelo regime quanto os artistas de esquerda.
A
produção musical brega (ou cafona) faz parte da realidade cultura brasileira,
tanto quanto o tropicalismo e a bossa nova e segundo o autor merece ser
analisada. O material do livro aborda três aspectos do papel de resistência desempenhado
por esses artistas. Em primeiro lugar, é analisado como muitas letras trazem a
denúncia ao autoritarismo e à segregação social. Por exemplo, a canção O Divórcio, de Luiz Airão, que a
princípio se chama Treze Anos, pode ser
lida tanto como um desabafo de um homem infeliz quanto um protesto ao regime
militar.
O autor
compara a produção musical dentro do contexto histórico, dando especial ênfase
ao Ato Institucional - AI5 (decreto emitido pelo governo militar). É lembrado que
a maioria desses cantores vivenciou o trabalho infantil: Nelson Ned e Agnaldo
Timóteo foram engraxates. Paulo Sérgio foi alfaiate.
Também
há histórias que só agora chegam ao público. Como a vez que Odair José teve a
música A Primeira Noite (que aborda sobre
a primeira experiência sexual de um garoto) censurada e, para escapar do veto,
apenas trocou o título para Noite de Desejos e passou incólume pelas
autoridades. Por sinal, Odair José era campeão de vetos da censura federal. Sua
canção Pare de Tomar a Pílula foi
proibida de ser executada nas rádios brasileiras e em toda a América Latina.
Mas
Odair José não foi o único a ser censurado. O cantor Fernando Mendes teve a
música Tributo a Carlinhos proibido,
já que ela poderia ser interpretada como referência aos presos políticos. Para
quem não sabe ou não se lembra, o menino Carlinhos tinha desaparecido sem
deixar pistas, na década de 1970, num caso policial célebre e não resolvido até
os dias atuais
Máximas
de Waldik Soriano – a mulher é como a música. A música serve para limpar a
alma, a mulher para limpar a casa – também estão presentes no livro. Assim como
situações que beiram a tragicomicidade: Nelson Ned passava por baixo da roleta
de ônibus por não ter dinheiro para pagar a passagem. Em brincadeira, segundo
ele, isso não era difícil.
Essas
histórias resgatam artistas que, entre 1968 a 1978, se destacaram no cenário
artístico nacional. Paulo César explica que apesar de esquecida, nossa música
popular cafona permanece guardada em estruturas de comunicação informais. Atire
a primeira pedra quem nunca cantarolou uma letra de música popular dessa época.
Apesar de gosto duvidoso, as melodias fazem parte do patrimônio afetivo de
milhares de brasileiros. Músicas como Eu
Não Sou Cachorro Não, Pare de Tomar a
Pílula e Cadeira de Rodas fazem
parte do repertório de um Brasil de excluídos, um país mergulhado na ditadura
militar e sacudido tanto por marchas moralistas de apoio à família, a
propriedade e à Igreja, quanto pela guerrilha urbana.
Paulo
César de Araújo, baiano nascido na cidade de Vitória da Conquista, na Bahia, é
historiador e mestre em Memorial Social. Quando escreveu o livro atuava como
professor de História, no ensino fundamental e médio, da rede pública do Estado
do Rio de Janeiro.
Fontes:
Carta Capital e Resenha Editora Record
Nesta postagem aproveitamos
para compartilhar uma versão digital do livro e o álbum “Eu Não Sou Cachorro Não”, lançado em 2004, pela
gravadora Universal Music, que continha 14 músicas,
consideradas emblemáticas pelo autor. As músicas do álbum são:
1. Torturas de amor (Waldik Soriano);
2. Em qualquer lugar (Odair José);
3. Não creio em mais nada (Paulo Sérgio);
4. A cruz que carrego (Evaldo Braga);
5. Retalhos de cetim (Benito di Paula);
6. Viagem (Odair José);
7. Eu queria ser negro (Marcus Pitter);
8. Você também é responsável (Dom & Ravel);
9. A galeria do amor (Agnaldo Timóteo);
10. Uma vida só - Pare de tomar a pílula (Odair José);
11. Brasileiro no meu calor (Sidney Magal);
12. Garoto de rua (Balthazar);
13. Eu não sou cachorro não (Waldik Soriano);
14. Vou tirar você desse lugar (Odair José & Caetano Veloso).
Paul César de Araujo - Autor livro "Eu Não Sou Cachorro Não"
Caetano Veloso e Odair José - Evento Phono 73
Música vetada pela Censura
Capa do Livro "Eu Não Sou Cachorro Não"
Contra Capa do Livro "Eu Não Sou Cachorro Não"